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COVID-19: o olhar de um economista

Artigo por Matheus Albergaria. [email protected] Publicado originalmente na Revista do...
Imprensa | 11/12/2020
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Artigo por Matheus Albergaria.
[email protected]
Publicado originalmente na Revista do Instituto de Finanças FECAP.

Os primeiros registros da chamada “doença do Coronavirus 2019” (COVID-19) ocorreram no final do ano de 2019. Conforme o nome sugere, a COVID-19 é causada pelo Coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (denominado SARS-CoV-2), estando geralmente associada a sintomas como febre, tosse seca e cansaço, embora outros sintomas também possam aparecer em casos mais graves da doença. Ao longo do ano, a disseminação do vírus por vários países ocorreu a uma velocidade espantosa: dados recentes, de outubro de 2020, sugerem a confirmação de mais de 39 milhões de casos, assim como um número de óbitos superior a um milhão em todo o mundo.

Entretanto, o olhar atento de um economista veria mais coisas neste contexto. Por exemplo, uma importante questão relacionada à pandemia do COVID-19 diz respeito a suas consequências em termos de saúde coletiva para a sociedade. De fato, poucas pessoas fora da área de economia sabem da existência de um campo de estudo chamado “economia do setor público”, no qual utilizamos a lógica econômica para estudar possíveis justificativas para a intervenção do governo na economia em situações específicas, como no caso de uma pandemia de dimensão internacional, por exemplo. Ao longo deste artigo, tentarei ilustrar possíveis maneiras de utilizarmos os ensinamentos desse campo para melhor entender algumas características da pandemia, assim como possíveis soluções a ela relacionadas. Ao fazer isto, tenho o objetivo de demonstrar ao leitor o potencial de aplicação de alguns princípios econômicos simples a uma situação prática de crescente complexidade.

Uma vez que a saúde coletiva pode ser vista como uma categoria especial de bens necessários a uma sociedade — os chamados “bens públicos “— passa a ser importante levarmos em conta as potenciais implicações derivadas dessa categorização. Especificamente, bens públicos apresentam duas características únicas: são (i) “não-excludentes” e (ii) “não rivais”. Ou seja, não é possível excluir ninguém de seu consumo (propriedade de não-exclusão), ao mesmo tempo em que o consumo do bem por uma pessoa não necessariamente afeta o consumo de outras pessoas na sociedade (propriedade de não-rivalidade). Exemplos de bens públicos – além da saúde pública propriamente dita – são a segurança nacional, faróis marítimos, fogos de artifício, parques públicos e praias (vale notar que todos esses exemplos são bens não-excludentes e não-rivais).

O principal desafio relacionado a bens públicos diz respeito ao possível surgimento de diferenças entre interesses individuais e o bem-estar coletivo. Por exemplo, no caso de questões de saúde pública, uma pessoa pode se perguntar se faz sentido cumprir um período de quarentena em casa, usar máscara em locais públicos, ou manter o distanciamento social, uma vez que suas ações podem vir a exercer impactos aparentemente insignificantes, em termos sociais. Ou seja, em situações assim, uma pessoa pode se fazer a seguinte pergunta: “será que minhas ações terão algum impacto significativo sobre o resto da sociedade”? Se a resposta a essa questão for negativa, a pessoa provavelmente terá poucos incentivos em cooperar com o bem-estar coletivo, uma vez que vê suas ações individuais como insignificantes, do ponto-de-vista social. Um problema decorrente de um raciocínio nestes moldes é que, se muitas pessoas pensarem dessa maneira, então será muito difícil para a sociedade conseguir alcançar metas de saúde pública (assim como qualquer meta que envolva a ação coletiva). Situações assim são conhecidas como “dilemas sociais”: ações que aparentemente fazem sentido do ponto de vista individual não necessariamente levam aos melhores resultados do ponto de vista da social. Este fato traz importantes implicações para a atual situação de pandemia que vivemos no Brasil e no mundo. Uma vez que a saúde coletiva pode ser vista como um bem público, passa ser necessário um alto grau de coordenação entre as ações individuais e os objetivos da sociedade. O maior desafio para um governo, em um contexto envolvendo bens públicos, é coordenar as ações individuais de modo a obter resultados que sejam satisfatórios para a sociedade como um todo.

Um outro aspecto importante da pandemia diz respeito à ocorrência de um fenômeno econômico conhecido como ” externalidades” (ou “efeitos externos”) pelos economistas. Assim como os bens públicos, as externalidades correspondem a “falhas de mercado”, ou seja, a situações nas quais o sistema de mercado deixa de funcionar adequadamente, gerando situações ineficientes do ponto-de-vista da sociedade como um todo (em situações assim, seria possível melhorar a situação de algumas pessoas na sociedade sem necessariamente prejudicar outras pessoas). As externalidades ocorrem quando as ações de um indivíduo ou empresa acabam por ter resultados não planejados sobre outras partes. Por exemplo, uma empresa que produza aço e despeje resíduos químicos em um rio pode vir a prejudicar a saúde das famílias de pescadores que vivem da pesca no mesmo rio. No caso da pandemia, há a possibilidade de ocorrência de externalidades negativas, uma vez que algumas pessoas podem vir a contaminar outras, mesmo sem saber que estão infectadas pelo vírus (há vários relatos de casos assintomáticos do vírus). Ou seja, mesmo sem ter a menor intenção de prejudicar outras pessoas, uma pessoa contaminada pode acabar prejudicando a sociedade como um todo.

Um exemplo extremo de ocorrência de externalidades negativas corresponde à chamada “Tragédia dos Comuns”, uma parábola criada no século XIX para explicar as potenciais consequências adversas de situações envolvendo bens conhecidos como “recursos comuns”. Embora esses bens sejam não-excludentes como os bens públicos, eles são rivais (ou seja, o consumo do bem por um indivíduo acaba afetando a disponibilidade do mesmo para outros indivíduos). Exemplos de recursos comuns seriam terras de propriedade comum, assim como peixes no mar e algumas espécies animais (não por coincidência, essa parábola vem sendo muito utilizada na biologia). De acordo com a “tragédia”, diferenças entre interesses individuais e interesses sociais poderiam vir a levar a uma situação na qual a sociedade como um todo acaba perdendo, no final. Por exemplo, uma situação na qual todas as pessoas de uma sociedade tenham acesso a um recurso comum – como as terras comuns na Inglaterra durante uma época – traz a possibilidade de surgimento de padrões de consumo excessivo desse recurso, o que poderia fazer com que a sociedade terminasse em uma situação pior, em termos de bem-estar social (as terras comuns poderiam se tornar estéreis, no caso).

Mas, afinal, o que essas situações dizem para nós? Em primeiro lugar, a ocorrência de falhas de mercado nos moldes aqui descritos pode sugerir um papel mais ativo para o governo, seja em nível municipal, estadual ou federal. Uma vez que o mercado nem sempre resulta em situações eficientes do ponto de vista social, pode haver um papel para atuação do governo na economia. Por exemplo, uma maneira dos governos do mundo reduzirem os impactos da pandemia é a partir da constatação de ocorrência de externalidades entre as pessoas em um contexto de pandemia. Adicionalmente, o fato do Coronavírus apresentar um padrão de complementariedade com outras fontes de morbidade — como a obesidade, a diabetes, o câncer e problemas de coração — torna necessária a implementação de políticas públicas focadas em disseminar informações relacionadas às formas de contágio do COVID-19.

Outra maneira dos governos combaterem os efeitos adversos da pandemia é a partir da instauração de políticas públicas baseadas nos chamados “bens de mérito”, bens que o governo incentiva as pessoas a consumirem, supondo que elas nem sempre fazem escolhas favoráveis ao seu próprio bem-estar individual (o cinto de segurança em veículos automotores corresponde a um exemplo clássico de bens de mérito). No caso da pandemia, dois exemplos de bens desse tipo são a política de distanciamento social, assim como o uso de máscaras em locais como supermercados ou academias de ginástica. No caso, o governo tenta incentivar o consumo de bens de mérito pela população ao torná-los obrigatórios, em determinadas situações. Um governo local – como uma prefeitura – poderia cobrar multas de estabelecimentos nos quais as pessoas fossem vistas sem máscaras durante períodos de quarentena, por exemplo.

Uma potencial solução para a pandemia – muito divulgada pela mídia no período recente – corresponde à criação de uma vacina capaz de imunizar as pessoas em relação aos efeitos adversos do COVID-19. Embora haja mais de uma empresa envolvida no processo de criação e teste de vacinas nestes moldes, ainda não se tem notícia de uma solução definitiva até o momento em que escrevo este artigo. Ainda assim, sabemos que, do ponto de vista econômico, uma vacina eficaz no combate do vírus deve ter algumas propriedades importantes. Primeiro, a vacina deve ter as características de um bem público: ser não-excludente (nenhuma pessoa pode ser excluída de seu alcance) e não -rival (o fato de uma pessoa receber a vacina não deve impedir que outras pessoas também a recebam). Segundo, a principal vantagem de uma vacina deve-se ao fato dela estar associada a externalidades positivas. Ou seja, o fato de uma pessoa estar vacinada acaba impedindo que outras sejam contaminadas pelo vírus ao longo do tempo. Dadas essas características, a vacina deve ser provida pelo governo, uma vez que está diretamente associada a duas importantes falhas de mercado: a provisão de bens públicos e a ocorrência de externalidades.

As situações descritas neste artigo apontam para a importância de considerarmos diferenças entre os interesses individuais e o bem-estar coletivo. Ou seja, nem sempre o que é melhor para um indivíduo ou grupo de indivíduos será necessariamente melhor para sociedade como um todo. Uma potencial forma de aliviarmos os efeitos nocivos da pandemia é a partir da colaboração de todos na sociedade: se uma pessoa colabora — seguindo o regime de quarentena, usando máscaras em locais públicos e mantendo o distanciamento social — todos ganham com isso. Em última instância, é importante considerarmos a interação entre interesses individuais e o bem-estar coletivo em uma sociedade cada vez mais complexa e diversa, na qual ocorrem falhas de mercado. Do ponto de vista de um economista, as possíveis saídas para a pandemia não são fáceis, embora sejam possíveis, desde que cada pessoa passe a levar em consideração os possíveis impactos de suas ações sobre a sociedade como um todo.

Sobre o autor
Matheus Albergaria de Magalhães
Bacharel em Ciências Econômicas pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (FACE-UFMG), mestre em Teoria Econômica e doutor em Administração pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), com período de pós-doutorado no departamento de Economia da mesma instituição. Atualmente trabalha como professor de disciplinas de cursos de graduação e pós-graduação na Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP), também atuando como revisor científico de periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Membro do Conselho Editorial do International Journal of Multivariate Data Analysis (IJMDA) e Editor Associado do RAUSP Management Journal, desde os anos de 2015 e 2018, respectivamente. Desenvolve pesquisas em temas de macroeconomia e economia comportamental.

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