Por: Cláudio Gonçalves dos Santos e Sérgio Volk
Em uma economia complexa e marcada por choques recorrentes de oferta, volatilidade cambial e rigidez estrutural de preços, até que ponto o aumento da taxa Selic ainda pode ser considerado um instrumento eficaz de combate à inflação no Brasil?
A confiança quase automática na elevação dos juros como solução inflacionária parece ignorar nuances fundamentais da realidade econômica nacional. Ao insistir em uma resposta padronizada a contextos diversos, corre-se o risco de gerar mais custos do que benefícios — desestimulando investimentos, encarecendo o crédito e agravando o endividamento público — sem necessariamente resolver o problema inflacionário de forma estrutural.
Este artigo propõe uma análise crítica das limitações da Selic como ferramenta de política monetária, buscando ampliar o debate sobre alternativas mais equilibradas e eficazes para a estabilidade econômica do país.
Desde a adoção do regime de metas de inflação, em 1999, a taxa básica de juros — a Selic — tornou-se o principal instrumento da política monetária brasileira. O Banco Central do Brasil utiliza a Selic para ancorar as expectativas inflacionárias e manter a inflação dentro da meta, atualmente fixada em 3,0% ao ano, com uma margem de tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo.
A lógica econômica por trás do instrumento é clara: elevar os juros torna o crédito mais caro e desestimula o consumo e o investimento, reduzindo a demanda agregada e, com isso, a pressão sobre os preços. No entanto, a eficácia desse mecanismo depende da natureza da inflação enfrentada e da sensibilidade dos diferentes setores da economia à variação dos juros.
A demanda agregada é influenciada por diversos fatores — política fiscal, renda disponível, crédito, expectativas dos agentes e cenário global — e exerce papel central na dinâmica da atividade econômica, do emprego e dos preços. Entretanto, a resposta dos preços à variação da Selic não é uniforme nem linear. Setores com menor dependência de crédito ou com estruturas de preços mais rígidas tendem a apresentar baixa elasticidade frente à elevação dos juros, o que limita a eficácia da política monetária.
Grande parte dos episódios inflacionários no Brasil está relacionada a choques de oferta, como variações abruptas no preço do petróleo ou no abastecimento de alimentos. Esses choques deslocam a curva de oferta agregada, elevando preços e reduzindo a produção. Um exemplo emblemático foi o aumento do petróleo em 2004, quando o barril saltou de US$ 30 para US$ 50, impactando fortemente os preços administrados e respondendo por cerca de 50% da inflação medida pelo IPCA naquele ano que foi de 7,6%.
Esse tipo de inflação, de natureza predominantemente “cost-push inflation”, não é eficientemente combatido com a elevação da Selic, que atua principalmente sobre a demanda.
Os preços administrados — como energia elétrica, combustíveis, transporte público, planos de saúde e medicamentos — representam cerca de 25% a 30% da composição do IPCA. Por serem determinados ou fortemente influenciados por políticas públicas ou contratos regulados, esses preços têm baixa sensibilidade à política monetária, escapando ao controle direto do Banco Central.
Além disso, a economia brasileira apresenta elevado grau de rigidez de preços, ou seja, muitos preços não se ajustam imediatamente às mudanças nas condições monetárias. Essa inelasticidade decorre de fatores como contratos de longo prazo, custos de reajuste (os chamados custos de menu) e expectativas inflacionárias persistentes. Assim, mesmo com a elevação da Selic, o impacto sobre os preços pode ser lento e limitado.
A inflação brasileira também é influenciada por fatores externos, como a volatilidade cambial e os preços internacionais de commodities. Em cenários de desvalorização do real ou de alta dos insumos importados, observa-se o fenômeno da inflação importada. Como a elevação da Selic não atua diretamente sobre essas causas, seu efeito é apenas indireto — por exemplo, atraindo capital estrangeiro e valorizando o câmbio, o que pode conter preços em dólar, mas, ao mesmo tempo, comprometer a competitividade das exportações e a produção doméstica.
A elevação da Selic também impõe custos relevantes à economia real. O crédito se torna mais caro, afetando setores intensivos em financiamento, como construção civil, varejo de bens duráveis e pequenas e médias empresas. A restrição ao crédito e ao consumo contribui para a desaceleração do crescimento econômico e pode elevar o desemprego.
Além disso, a alta dos juros impacta diretamente o custo da dívida pública, já que grande parte dos títulos emitidos pelo Tesouro está atrelada à Selic. Com isso, os gastos com juros aumentam, pressionando o resultado fiscal e reduzindo o espaço para investimentos públicos e políticas sociais.
Diante das limitações evidenciadas, é necessário que a política monetária brasileira evolua para além do automatismo da elevação da Selic como resposta padrão à inflação. Isso implica reconhecer a natureza multifacetada dos choques de preços e incorporar uma abordagem mais integrada e coordenada entre política monetária, política fiscal e reformas estruturais.
A atuação do Banco Central deve ser complementada por medidas que aumentem a concorrência em setores protegidos, melhorem a previsibilidade regulatória, reduzam a indexação e incentivem o investimento em infraestrutura produtiva. Do lado fiscal, o compromisso com a sustentabilidade das contas públicas é condição necessária para ancorar expectativas sem depender exclusivamente dos juros.
O Brasil precisa de um novo pacto de estabilidade que vá além da taxa Selic — um pacto baseado na eficiência do gasto público, na produtividade da economia e na capacidade de construir consensos em torno de uma trajetória sustentável de crescimento com estabilidade de preços.
Os autores
Cláudio Gonçalves dos Santos é economista, mestre em administração financeira e contabilidade, MBA em finanças de empresas, Gestor de Valores Mobiliários com registro na CVM, Conselheiro de Administração, Professor Universitário em cursos de pós-graduação da FECAP/SP. Sócio da Planning, onde atua com Assessoria Financeira, Avaliação de Empresas (Valuation) e Wealth Management.
Sérgio Volk é economista, mestre em finanças e contabilidade, cursou doutorado em economia na EPGE- FGV/RJ, especialista em gestão e avaliação de empresas. Foi Diretor Financeiro nas empresas: Revestimento Cerâmico CECRISA, Portinari (atual Dexco), DaGranja Agroindustrial (atual Seara), dentre outras. Foi Diretor de Câmbio e Assuntos Internacionais do BANESTES, além de Conselheiro Fiscal da Electrolux do Brasil S.A., Inepar Energia S.A. e TECFIL – Sofape Fabricante de Filtros S.A. Foi Presidente do IBEF Espírito Santo, Paraná e Araraquara; Conselheiro Fiscal do IBEF/SP e membro do Conselheiro Consultivo da Cogni ESG; foi professor na FAAP – Centro Universitário Armando Alvares Penteado, é professor em cursos de pós-graduação na FEI, SP.