Um setor que existe em razão das causas e que promove a transformação da sociedade tem que ser o primeiro a respeitar os direitos das pessoas que atuam nele, oferecendo as melhores condições de trabalho possíveis. Infelizmente, essa não é a realidade do terceiro setor (ou setor da sociedade civil).
Por todo o país existem inúmeros exemplos de organizações que exploram trabalhadores, descumprem direitos e desrespeitam as pessoas que se dedicam a fazer a diferença na vida de outras. E geralmente tudo isso “em nome da causa”.
Há uma hipocrisia de lideranças do setor, de muitos “empreendedores sociais”, que para fora da instituição fazem um discurso bonito, mas para dentro exploram quem atua nela. Algumas dessas organizações, inclusive, têm certificados, ganham prêmios, aparecem em propagandas de grandes redes de TV e se tornam referência local e até nacional. Mas não valorizam e respeitam seus próprios funcionários.
A proposta deste texto não é criticar nenhuma ONG especificamente, mas chamar a atenção para muitas práticas que estão disseminadas no terceiro setor e que são erradas, e às vezes nem percebemos isso. A seguir vou listo algumas das “sacanagens institucionais de RH” que acontecem pelo país.
Contratação PJ/MEI
Logo de cara a mais importante: contratação de funcionário é com carteira assinada (CLT). Qualquer outra forma de vínculo para ter um empregado é fraude à legislação trabalhista. Fraude. MEI não é funcionário. PJ não é funcionário.
ONGs que trabalham para fazer a diferença no país e praticam o que defendem são ONGs que contratam funcionários seguindo a legislação e garantindo os direitos previstos em lei, como férias, descanso semanal remunerado, décimo terceiro etc.
- É caro contratar funcionário dentro da lei no Brasil? É caro.
- A nossa legislação é defasada e contém um monte de regras desnecessárias e ineficientes? É sim.
- Pode contratar alguém que vai ter um (a) chefe na organização, horário para trabalhar, se disponibilizar na maioria dos dias da semana e receber o mesmo salário todos os meses, sem ser CLT? Não pode.
Apesar disso, muitas organizações seguem desrespeitando a legislação e contratando funcionários como pessoas jurídicas ou MEI (microempreendedor individual). Estudo publicado recentemente pela ABCR mostrou que 42% das vagas de captação de recursos enviadas pelas organizações são com vínculo PJ ou MEI.
Muitas organizações dizem que não tem dinheiro para contratar com carteira assinada. Outras falam que assim é melhor para as pessoas receberem mais na conta. E por aí em diante. Desculpa todo mundo tem a sua…
Mas que fique bem claro para quem contrata funcionário (colaborador ou outro nome que a organização usa): em ONG a contratação tem que ser CLT, garantindo para a equipe todos os direitos e proteções previstos em lei.
Qualquer outra modalidade para um vínculo de emprego, além de ilegal é também imoral, e um setor que atua por um mundo melhor tem que dar o exemplo.
Pedir para enviar pretensão salarial (e tampouco revelar o valor da remuneração)
Sempre me incomoda muito quando vejo a divulgação de uma vaga de ONG que pede para “enviar pretensão salarial”. Como assim? A organização quer contratar alguém e não sabe quanto quer pagar? Ela espera que o(a) candidato (a) “acerte no alvo” ao enviar a sua pretensão salarial?
Na prática, quando uma ONG divulga uma vaga e pede para as pessoas dizerem quanto querem receber, o que ela pretende é pagar um salário menor ao contratar um profissional qualificado.
É uma vergonha. E é ineficiente: melhor divulgar o valor da remuneração oferecida pela vaga e receber currículos de pessoas que já estão dispostas a trabalhar pelo que é proposto, do que depois ter que ficar “negociando salário”, recusar bons profissionais que não aceitam a remuneração etc.
A própria divulgação do valor da remuneração das vagas não é uma prática corrente no setor, e muitas organizações até se recusam a informá-la quando alguém pergunta antes de enviar o currículo.
Lembro de uma vez ter ouvido de um chefe que “não íamos divulgar o salário porque assim as outras organizações saberiam quanto pagamos”. ONG não é empresa, não vive a mesma lógica de concorrência e deve ter o que esconder.
Promover um processo seletivo aberto e transparente só contribui para o fortalecimento do setor e a contratação das melhores pessoas, reduzindo a discriminação salarial e proporcionando maior equidade dentro das equipes e instituições.
44 horas semanais
Sim, eu sei que a constituição brasileira permite o trabalho de até 44 horas semanais para os funcionários, mas estamos em 2024. Você realmente acha que é certo fazer com que uma pessoa trabalhe toda essa quantidade de horas, ir de segunda à sexta-feira no escritório, e também aos sábados, ou ficar quase 9 horas por dia em atividade?
Se dependesse de mim todo mundo trabalhava 36 horas por semana, que me parece a quantidade razoável para sermos produtivos e termos uma boa qualidade de vida. Mas, como não depende de mim e eu não sou patrão, 40 horas está de bom tamanho. Cinco dias por semana, oito horas por dia, como na maioria das instituições – públicas e privadas.
Sindicatos
Que fique claro: nossa estrutura sindical é horrorosa, reproduz um modelo implementado em uma Itália fascista quase 100 anos atrás, e obriga os trabalhadores a serem “defendidos” por um único sindicato que geralmente é liderado pelo mesmo grupo há décadas, sem representatividade alguma.
Ainda assim, os sindicatos existem e, em sua maioria, garantem alguns benefícios mínimos para os trabalhadores do setor, como vale-refeição e alimentação, plano de saúde etc.
Muitas ONGs, por má-fé ou desconhecimento, ignoram o sindicato da localidade onde têm sede e não oferecem aos seus funcionários os direitos previstos em convenção/acordo coletivo.
Em alguns casos, muitas organizações chegam a afirmar que seus trabalhadores são representados por um outro sindicato só para não ter que oferecer os benefícios trabalhistas previstos pelo sindicado que é o representante dos funcionários, e que oferece melhores condições. Sim, eu já vi isso acontecer, e é má-fé mesmo.
Se você tem carteira assinada e não sabe se a sua organização está te proporcionando todos os seus direitos, inclusive os previstos em acordo/convenção coletiva, descubra qual é o sindicato da sua cidade/região e vá exercer o seu direito.
Que mais temos?
Acima eu listei acima algumas das “maldades de RH” que vejo acontecer no terceiro setor. Não são exclusivas das organizações sem fins lucrativos, mas justamente por atuarmos com causas é que acredito que deveriam ser exceção, e não a prática.
Há mais delas, claro. Como pedir fotos no currículo para fazer a contratação (ninguém deveria ser contratado por sua aparência); priorizar familiares das lideranças na composição das equipes internas (sim, há por aí muitas ONGs que são cabides de emprego de famílias); reajustar salários sem critério e tendo como base as relações interpessoais e não avaliações de desempenho sérias; incluir o salário do mesmo funcionário em projetos de financiadores diferentes e embolsar na instituição parte do recurso recebido etc.
E há também milhares de organizações sérias, que fazem tudo corretamente, respeitam a legislação e valorizam seus funcionários, e são excelentes lugares para se trabalhar, tanto do ponto de vista formal como do ambiente interno.
Afinal de contas, a gente passa mais tempo no escritório do que com a família, mais tempo trabalhando do que em atividades de lazer. Então o trabalho tem que ser gostoso e tem que nos fazer desejar estar lá. Trabalhar sem qualidade de vida é só obrigação. E a gente tem que ser feliz também no trabalho.
O autor: João Paulo Vergueiro é professor e coordenador do Fundo de Bolsas da FECAP e do Alumni Alvaristas, e diretor do GivingTuesday para a América Latina e Caribe. Foi diretor executivo da ABCR – Associação Brasileira de Captadores de Recursos e é doutorando em administração pela FGV-SP, estudando filantropia. Conselheiro da Fundação Amor Horizontal, da Kibô-no-Iê e da organização britânica SOFII, e presidente do Conselho Curador da Fundação NHR Brasil.